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O que será do Samba depois do Covid-19?
Desde que começou a pandemia vi muitas mudanças acontecerem em São Paulo, cidade para a qual vim morar há 5 anos atrás. Mas há duas mudanças que me têm atormentado particularmente e elas não estão a acontecer apenas no Brasil, vêmo-las em todos os países. No entanto, sendo esta a minha casa, são mudanças que me levam para a pergunta que mais apreensão sobre o futuro me tem causado: o que será do Samba depois do Covid-19?
Pode parecer uma pergunta irrelevante tendo em conta a tragédia que estamos a viver, mas na verdade sinto que o Samba tem o poder extraordinário de ser um símbolo brasileiro de algo muito maior, algo que eu temo que a humanidade perca depois do novo coronavírus, que é “a arte do encontro”, como diria Vinicius de Moraes.
Uma cidade sem vida
A primeira mudança que me tem atormentado é visível aos olhos: as cidades e as ruas vazias.
Quando começou o isolamento social em São Paulo eu estava em Cuba, a passar uns dias de férias. Para alguém que esteve 15 dias a viajar num país com pessoas naturalmente calorosas, chegar a uma cidade em isolamento social é especialmente perturbador, até porque eu moro num dos poucos bairros do centro de São Paulo que tem uma vida de rua muito agitada. O Largo da Igreja, onde antes os idosos se juntavam para jogarem às damas, está agora vazio. A Feira de rua onde comprava fruta e legumes ao domingo já não ocupa as ruas. A roda de samba do largo já não alegra as minhas noites de sexta-feira. Já não ouço as gargalhadas e os brindes dos copos de cerveja que vinham do boteco (palavra brasileira para bar-restaurante) da esquina.

Legenda: Grupo de homens que se junta regularmente para jogar Damas nas mesas do Largo da Santa Cecília. São Paulo, Fevereiro de 2019.
O curioso é recordar-me dos motivos que me fizeram mudar para este bairro: como lisboeta que sou, queria um bairro que fosse cheio de pequeno comércio e vida na rua. Um bairro que fosse o inverso daquilo que muitos dos bairros em São Paulo se estão a tornar: muito antes do Covid-19, alguns bairros da cidade já pareciam estar em isolamento social, tal é a falta de pequeno comércio e de pontos de encontro que existem para as pessoas na rua. Como no Brasil existe o problema da violência, a resposta das construtoras foi criar pequenas cidades dentro de condomínios. A proposta é que a pessoa consiga fazer tudo dentro do seu bunker – ginásio, manicure, churrasco, às vezes até tomar um café e comprar pão. Qual a consequência disto? Uma rua ainda mais perigosa, como é óbvio, pois não existe trânsito de pessoas, mas também algo que considero ser pior: uma cidade cheia de “não-lugares”, expressão criada pelo antropólogo francês Marc Augé para descrever lugares transitórios nos quais não se criam laços de afeto, algo tão importante para a nossa individualidade e para o colectivo. Uma rua de um bairro cheio de condomínios-bunker é um não-lugar, assim como um grande hipermercado, no qual as relações interpessoais são distantes.

Legenda: Uma senhora guarda um cacho de bananas no seu carrinho de compras, na Feira da Santa Cecília que acontece todos os domingos perto do Largo do bairro. São Paulo, Novembro de 2019.
De repente, a razão pela qual tinha mudado de bairro estava ali, e com isso a lembrança assustadora de que não é preciso um Covid-19 para as cidades e o mundo caminharem naturalmente para uma dinâmica de isolamento. Isso já estava a acontecer em muitos dos bairros de São Paulo mas de uma forma menos rígida.
Neste contexto, é preciso lembrarmo-nos como o boteco da esquina, o largo da igreja, a feira de rua e o samba são importantes para as cidades e para as pessoas – eles mantêm vivos os encontros físicos num mundo que nos atira cada vez mais para os encontros virtuais. É fácil sucumbirmos à comodidade do online – poupa tempo e dinheiro – mas ele tira-nos a experiência física do encontro que é arrebatadora e acontece num plano sensível essencial para nos sentirmos vivos e mantermos a nossa humanidade. Ainda bem que existe tecnologia, pois neste momento só ela nos resta para mantermos os nossos laços afetivos, mas só o encontro físico e a proximidade são capazes de nos fazerem sentir com os cinco sentidos e trazer com isso a empatia. É fácil fecharmos os olhos ao que está distante, mas o que está próximo é incontornável.
A desconfiança do outro
A segunda mudança que me tem atormetando não é visível aos olhos, e talvez por isso ela seja ainda mais perigosa do que a primeira: a desconfiança que sentimos de todos os que estão à nossa volta, provocada pelo medo de sermos “infetados”, expressão que inclusive contribui para a construção desta desconfiança colectiva.
Li no facebook de uma amiga de quem gosto muito um relato de uma situação que ela passou com um carteiro que tinha ido à casa dela para entregar uma encomenda. Quando o carteiro lhe emprestou a caneta para assinar a entrega, ela ficou absorvida pelo medo e hesitante entre aceitar ou ir buscar a própria caneta, e nesse momento de hesitação, o carteiro disse-lhe “Pode ir buscar a sua, dona.”. Ela imediatamente saiu do “transe” de hesitação e olhou para cima, para o carteiro, e pela primeira vez olhou com atenção para a pessoa que tinha à sua frente e reparou que ela não tinha nem máscara nem álcool gel. Rapidamente se sentiu culpada, aceitou a caneta, e perguntou se não lhe tinham dado máscaras no trabalho nem álcool gel, para ver se o poderia ajudar.
Eu acho o relato desta minha amiga para além de corajoso, pois decidiu abrir-se e falar sobre uma fragilidade e um sentimento de culpa, muito interessante como metáfora do que estamos a viver. O medo apoderou-se de nós de tal forma que muitas vezes não conseguimos olhar para quem está à nossa volta como um ser humano mas sim como um potencial inimigo no sentido que qualquer um nos pode transmitir o vírus e “infetar-nos”. Eu mesma no sábado fui ao supermercado e, ao ver uma mulher desgovernada sem máscara vir rapidamente na minha direção, levantei o pacote de cogumelos e pu-lo em frente à cara como uma trincheira de guerra, com medo que ela tossisse para cima de mim.
Depois desta situação tragi-cómica lembrei-me que cogumelos não são trincheira nem eu preciso de uma, pois não estamos em guerra, ainda que o clima mundial facilmente nos ponha com esse sentimento de desconfiança de tudo e todos. O inimigo é invisível e por isso pode estar em qualquer um e em qualquer lugar.

Legenda: Janelas e ares-condicionados da fachada de um prédio na Avenida Paulista. São Paulo, Março de 2018.
O problema dos inimigos invisíveis é que eles facilmente abrem alas para se instalarem sistemas autoritários. Lembremo-nos por exemplo do livro “1984”, de George Orwell. Um sistema autoritário é mantido pelo “Grande Irmão”, que supervisiona todos os cidadãos e instala o medo contra o inimigo Emmanuel Goldstein, que ninguém sabe se é real pois só o vêm em imagens mostradas pelo partido do poder.
Não estou com isto a dizer que não existe inimigo – o Covid-19 existe e medidas precisam ser tomadas para se salvaguardar a vida, como por exemplo ficar em casa – mas o que não podemos permitir é que se instalem medidas autoritárias como a vigilância da população através da localização dos nossos telemóveis, que já está a contecer em muitos países, inclusive no Brasil.
Contra inimigos invisíveis a resposta não deve ser o autoritarismo, que apenas reconhece algumas formas de vida como legítimas, mas sim a tomada de consciência e a empatia. Essas não se alcançam com a desconfiança do outro, mas sim com a confiança e o amor por todas as formas de vida.
Não deixemos o samba morrer!
As rodas de samba no Brasil acontecem muitas vezes em largos e juntam não só os moradores daquele bairro, que muitas vezes se conhecem, como também pessoas de outros bairros que são desconhecidas. Por ter sido criado no morro por ex-escravos que foram trazidos de África para o Brasil pelos portugueses, o samba é também, desde sempre, uma manifestação de resistência contra regimes opressores e autoritários que não respeitam o diferente.

Legenda: Rapariga dança numa roda de samba depois de ter participado na Parada do Orgulho LGBTQI, que acontece todos os anos na Avenida Paulista. São Paulo, Julho de 2016.
Porque o Samba sempre proporcionou o encontro físico entre todas as formas de vida e sempre fez poesia contra regimes autoritários, eu digo: não deixemos o samba morrer! Não só o samba como género musical, que esse espero que tenha vida longa nas minhas noites de sexta-feira, mas o samba dentro de cada um de nós. O nosso lado que valoriza os encontros humanos no seu plano físico e também valoriza a liberdade e a confiança no outro.
Eu lembro-me até hoje da minha primeira roda de samba. Foi na Praça São Salvador no Rio de Janeiro, em 2013. Marcou-me não só pela música, que tem o poder trascendental de nos deixar leves e felizes mesmo no nosso pior dia, mas também por me ter juntado a pessoas tão diferentes num momento de troca íntimo apesar de acontecer num espaço público e entre desconhecidos.
Por isso eu pergunto-me: o que será do Samba depois do Covid-19? Só ele nos deixa espaço para reparar em quem está à nossa frente e para amar a vida, amar os encontros. Amar até mesmo o desconhecido.
Link para ouvir a música “Não deixe o Samba Morrer”, de Alcione:
Carolina Valentim
Carolina Valentim é coordenadora de Comunicação no Grupo Raízes. Trabalhou os últimos 6 anos com Planeamento Estratégico em agências de Publicidade entre Lisboa e São Paulo e hoje dedica-se a trabalhos de Pesquisa e Cultural Insights, utilizando a Fotografia como ferramenta ou como expressão artística. Para além disso, nos tempos livres está a aprender a tocar trompete numa Escola de Jazz.
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Obrigado à Briefing pelo apoio de comunicação
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